Grande parte dos médicos acredita que o erro médico nasce de uma falha técnica: um diagnóstico incorreto, uma conduta clínica inadequada, um procedimento mal executado. Mas a verdade é que, na maioria das sindicâncias e processos ético-profissionais, a causa raiz não está no ato médico em si, e sim em algo muito mais simples — e mais fácil de prevenir.
👉 O que mais leva médicos a responderem a processos éticos é a falha na comunicação com o paciente e a ausência de documentação adequada no prontuário médico.
Esses dois fatores — a comunicação ineficaz e a documentação incompleta — são as principais brechas que transformam um atendimento ético em um problema disciplinar.
Este artigo se aprofunda nesses dois erros silenciosos, analisando suas consequências à luz do Código de Ética Médica (CEM) e do Código de Processo Ético-Profissional (CPEP). Mais do que apontar falhas, o objetivo é mostrar como evitá-las e proteger sua atuação profissional.
1️⃣ Comunicação ineficaz: a origem da maioria das denúncias
O erro médico mais frequente não é técnico — é comunicacional. E o motivo é simples: o paciente que não entende o que o médico disse tende a interpretar de forma errada o que foi feito.
O Código de Ética Médica, em seus artigos 31 e 34, determina que o médico deve informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, em linguagem clara, acessível e compreensível.
Mas, na prática, a pressa, o volume de atendimentos e até o medo de causar ansiedade fazem com que muitos médicos resumam informações ou usem termos técnicos demais. O resultado? Desconfiança.
💬 O impacto da má comunicação
Pesquisas mostram que 65% das queixas registradas nos Conselhos Regionais de Medicina têm origem em problemas de comunicação, e não em erro técnico. Ou seja, o paciente não processa que houve um evento adverso inevitável — ele sente que foi “maltratado” ou “mal informado”.
Quando o paciente não compreende a conduta, ele preenche as lacunas com emoções: medo, frustração e raiva. E essas emoções são o combustível de denúncias éticas e ações judiciais.
2️⃣ O peso da empatia e da escuta ativa
A comunicação eficaz vai além de transmitir informações. Ela envolve empatia, tom de voz, paciência e, sobretudo, a capacidade de ouvir o paciente.
O artigo 23 do CEM reforça que o médico deve tratar o paciente com civilidade, respeito e consideração. Mesmo em situações de tensão, o médico deve manter o controle emocional e a escuta ativa — isso reduz drasticamente os conflitos.
Um paciente que se sente ouvido dificilmente se transforma em um denunciante. E isso não é retórica: é estatística.
3️⃣ O segundo erro invisível: documentação incompleta
Depois da comunicação falha, o segundo erro médico que mais gera processos é a ausência de registros adequados.
O prontuário médico é o principal instrumento de defesa do profissional. Ele é, segundo o artigo 87 do CEM, um documento ético, legal e técnico, que deve refletir toda a atuação médica.
Mas em muitos casos, o prontuário contém apenas fragmentos do atendimento:
- Diagnóstico abreviado,
- Ausência de horários,
- Falta de assinatura,
- Nenhuma menção ao consentimento informado,
- E nenhuma descrição sobre o retorno ou a orientação dada.
Essas falhas simples são o que enfraquece a defesa.
🩺 “O que não está no prontuário, não existe”
Essa frase é quase um mantra jurídico. No Código de Processo Ético-Profissional (CPEP), o médico tem o ônus da prova sobre a correção de sua conduta. Ou seja, se não documentou, não tem como comprovar que informou, orientou ou obteve consentimento.
Em sindicâncias, é comum que o paciente alegue:
“O médico não me explicou o tratamento.”
E o médico responda:
“Mas eu expliquei verbalmente.”
Sem registro no prontuário, prevalece a versão do paciente, daí a importância da devida comunicação entre eles..
4️⃣ Como a documentação incompleta destrói defesas
Nos processos ético-profissionais, o prontuário é analisado em detalhes. Cada lacuna é interpretada como falta de zelo ou omissão.
O artigo 88 do CEM proíbe expressamente deixar de elaborar prontuário legível, datado e assinado. Além disso, o artigo 89 determina que o documento deve ser guardado sob sigilo e disponibilizado ao paciente quando solicitado.
Médicos que não seguem esses preceitos cometem uma infração ética grave. Mesmo sem erro técnico, a falta de uma boia comunicação podem levá-lo a ser advertidos, censurados ou até suspensos pelo Conselho Regional de Medicina (CRM).
Em termos simples: não documentar corretamente é tão grave quanto errar o diagnóstico.
5️⃣ O papel do consentimento informado
Entre os componentes da documentação, o consentimento informado é o mais negligenciado — e o mais decisivo.
O artigo 22 do CEM proíbe o médico de realizar procedimentos sem o consentimento e comunicação devida do paciente ou de seu representante legal. Já o artigo 31 obriga o profissional a esclarecer riscos e alternativas de tratamento.
Isso não é mera formalidade: é o que garante a segurança jurídica do médico.
O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) deve conter:
✔️ Identificação completa do paciente e do médico;
✔️ Descrição simples do tratamento e dos riscos;
✔️ Declaração de que o paciente entendeu as informações;
✔️ Assinaturas de ambas as partes.
Sem isso, o médico fica vulnerável.
Nos tribunais, o TCLE é frequentemente a diferença entre absolvição e condenação.
6️⃣ Casos reais: quando a falta de registro virou condenação
Um médico foi processado no CRM por um paciente que alegava não ter sido informado sobre os riscos de um procedimento estético. O profissional afirmou que havia feito a comunicação verbal, mas não registrou no prontuário. Resultado: censura pública por violar o dever de esclarecimento.
Em outro caso, um cirurgião foi denunciado após complicações em uma cirurgia de urgência. O prontuário não continha informações sobre exames pré-operatórios, orientações ou evolução do quadro clínico. Mesmo comprovando a correção técnica do ato cirúrgico, o médico foi advertido por falha ética na documentação.
Esses exemplos mostram que o erro médico muitas vezes não é clínico, e sim administrativo e comunicacional.
7️⃣ Como o Código de Processo Ético-Profissional orienta a defesa
O CPEP define o passo a passo do processo ético. Quando há denúncia, o CRM instaura uma sindicância médica, colhe depoimentos e analisa documentos.
Se houver indícios de infração, o processo é aberto. E é nesse ponto que a documentação faz diferença:
- Um prontuário completo acelera o arquivamento da denúncia;
- Um prontuário falho alimenta o processo e dificulta a defesa.
O artigo 24 do CPEP assegura ao médico o direito à ampla defesa. Mas, na prática, a defesa começa no consultório, com a forma como o médico comunica e registra suas condutas.
8️⃣ Estratégias para evitar processos
Evitar erro médico é, acima de tudo, uma questão de prevenção. Veja boas práticas que reduzem drasticamente o risco de sindicâncias:
📋 Documentação detalhada
Registre todas as etapas do atendimento: anamnese, diagnóstico, tratamento, evolução, orientações e retorno.
🖊️ Prontuário legível e completo
Use letra clara (ou sistema digital), identifique horários e assine cada página.
📑 Consentimento informado sempre
Em qualquer procedimento invasivo ou terapêutica de risco, formalize o consentimento.
🧠 Comunicação empática
Adote uma linguagem acessível. Lembre-se: informar é proteger.
⚖️ Assessoria jurídica preventiva
Em caso de dúvida, consulte advogado especializado em direito médico. A prevenção custa menos do que uma defesa.
9️⃣ Ética e empatia: pilares inseparáveis
O Código de Ética Médica não é apenas um conjunto de regras — é um guia de conduta que protege o médico e o paciente. Cumprir suas normas é uma forma de respeito e segurança.
Um dos princípios fundamentais do CEM diz:
“O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.”
Esse zelo inclui falar com clareza, registrar com precisão e agir com transparência.
Quando o médico pratica a empatia e documenta corretamente, ele não apenas evita processos — ele fortalece a confiança na medicina.
1️⃣0️⃣ Conclusão
O erro médico mais comum não está no bisturi, mas na comunicação. E o mais perigoso não está na conduta clínica, mas na omissão documental.
Em um ambiente cada vez mais judicializado, a comunicação eficaz e a documentação completa são os maiores aliados do profissional. São eles que transformam uma denúncia infundada em um arquivamento rápido e justo.
Médicos que entendem isso exercem a profissão com mais tranquilidade, confiança e segurança jurídica. Porque, no fim, o que protege o médico não é o silêncio, mas a clareza.
