Nos últimos anos, o avanço da judicialização na área da saúde tem gerado grande preocupação entre os profissionais médicos. Um fenômeno inicialmente visto como positivo, ao assegurar direitos fundamentais aos pacientes, começou a assumir contornos controversos ao atingir diretamente a autonomia médica, criando situações complexas que desafiam diariamente médicos, gestores e pacientes.
A autonomia médica, princípio basilar da prática profissional, garante que decisões clínicas sejam tomadas pelo profissional de saúde com base no seu conhecimento técnico-científico, experiência clínica e diretrizes éticas estabelecidas pelos Conselhos Regionais e Federal de Medicina. No entanto, essa autonomia tem sofrido limitações importantes devido à crescente judicialização, muitas vezes motivada por disputas relacionadas a planos de saúde, tratamentos fora do rol da ANS e alegações de erro médico.
A Judicialização Excessiva e suas Consequências
A judicialização ocorre quando decisões médicas são levadas aos tribunais para validação ou contestação. Embora inicialmente possa parecer positiva, ao garantir que pacientes tenham acesso a tratamentos negados injustamente, a prática tem se mostrado problemática quando ocorre de maneira indiscriminada. Muitos profissionais têm relatado situações onde decisões judiciais desconsideram critérios clínicos, protocolos técnicos e evidências científicas, impondo tratamentos ou procedimentos que não têm o respaldo necessário da comunidade médica.
Essas decisões acabam gerando uma série de consequências indesejáveis. Em primeiro lugar, comprometem a qualidade e segurança do atendimento, forçando médicos a realizar procedimentos ou tratamentos sem comprovação científica ou que não representam a melhor opção clínica para o paciente. Além disso, aumentam exponencialmente os custos do sistema de saúde, afetando sua sustentabilidade e gerando desigualdade no acesso aos recursos.
Outro aspecto preocupante é o impacto psicológico e ético sobre o profissional médico. A pressão constante de possíveis litígios pode levar à prática de uma medicina defensiva, na qual os médicos tomam decisões clínicas guiadas pelo medo de processos judiciais, ao invés da melhor evidência disponível, prejudicando o relacionamento médico-paciente e comprometendo o exercício ético da profissão.
Casos Recentes e Jurisprudência Atual
Diversos casos ilustram claramente como a judicialização afeta negativamente a autonomia médica. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisou casos envolvendo o fornecimento de medicamentos off-label e tratamentos fora do rol da ANS, reconhecendo a necessidade de respaldo científico rigoroso para determinar a obrigatoriedade de cobertura pelos planos de saúde. Essas decisões são positivas por reforçarem que não é papel dos tribunais substituir as decisões médicas, mas sim assegurar que estas estejam amparadas por diretrizes e evidências científicas.
Contudo, ainda são frequentes decisões judiciais de primeira instância que desconsideram avaliações técnicas, impondo tratamentos ou procedimentos inadequados ou excessivamente onerosos, sem respaldo clínico suficiente. Esta prática não apenas ameaça a autonomia médica, como também coloca em risco a saúde e segurança dos pacientes.
Como Proteger a Autonomia Médica?
Diante desse cenário, torna-se fundamental encontrar um equilíbrio entre a necessária proteção aos direitos dos pacientes e a preservação da autonomia médica. Algumas medidas podem contribuir para alcançar este equilíbrio:
- Fortalecimento das Diretrizes Clínicas: É fundamental que médicos e instituições tenham diretrizes clínicas sólidas, baseadas em evidências científicas robustas e consensuais, que possam ser facilmente defendidas em juízo.
- Educação Continuada e Informação Jurídica: Médicos precisam de melhor preparação para entender os riscos e limites jurídicos relacionados à sua prática profissional, tornando-os mais seguros em suas decisões clínicas.
- Aproximação entre Direito e Medicina: Maior diálogo entre profissionais da área jurídica e médica pode ajudar a criar entendimento mútuo, evitando decisões judiciais desconectadas da realidade clínica.
- Mediação Extrajudicial: Incentivar o uso de mediação e conciliação antes de ações judiciais pode reduzir a judicialização, favorecendo acordos baseados em soluções técnicas e consensuais.
- Advocacia Especializada em Direito Médico: Ter acesso a advogados especializados em Direito Médico pode garantir maior proteção para profissionais e instituições, evitando decisões precipitadas ou inadequadas por falta de argumentos técnicos claros e convincentes nos tribunais.
Conclusão
A judicialização excessiva ameaça seriamente a autonomia médica, colocando em risco não apenas a prática profissional, mas também a qualidade assistencial e a sustentabilidade financeira do setor da saúde. É necessário que médicos, juristas e gestores públicos trabalhem juntos para equilibrar o direito legítimo dos pacientes ao acesso à saúde com o respeito à autonomia clínica e técnica dos profissionais médicos.
Garantir que decisões médicas sejam embasadas em evidências científicas e diretrizes claras é fundamental para preservar a segurança, qualidade e eficácia dos tratamentos. A autonomia médica é um valor essencial que precisa ser defendido e protegido para que a medicina continue sendo exercida com responsabilidade, ética e em prol da saúde dos pacientes.
Nesse contexto, é urgente um diálogo franco e constante entre todos os envolvidos, buscando um sistema de saúde mais justo, eficiente e equilibrado, onde médicos possam exercer plenamente sua autonomia, e pacientes tenham garantidos seus direitos fundamentais de maneira responsável e sustentável.