A negativa de cobertura por parte dos planos de saúde é uma das maiores fontes de judicialização na área da saúde no Brasil. Entre os pedidos mais recorrentes estão os relacionados ao fornecimento de medicamentos — especialmente aqueles de alto custo, não padronizados ou de uso domiciliar.
A questão central que surge é: o plano de saúde é obrigado a fornecer medicamento prescrito pelo médico, mesmo quando ele não está listado no rol da ANS? Essa dúvida movimenta tribunais de todo o país e afeta diretamente a vida de milhares de pacientes.
Neste artigo, vamos analisar uma decisão recente da Justiça que determinou a obrigação de cobertura, explicar o que diz a legislação (como a Lei dos Planos de Saúde, a Lei 14.454/2022 e o Código de Defesa do Consumidor) e mostrar como os tribunais têm se posicionado sobre o tema.
Nosso objetivo é fornecer informações claras, éticas e fundamentadas, para que médicos, pacientes e gestores de saúde compreendam os limites e responsabilidades envolvidas.
O caso concreto: decisão judicial que garante o fornecimento de medicamento prescrito
Em processo recente julgado pela Justiça estadual, uma paciente ajuizou ação contra seu plano de saúde após ter negado o fornecimento de medicamento de alto custo, prescrito para tratamento de sua doença crônica. O plano alegava que o fármaco não constava no rol da ANS e, portanto, não tinha a obrigação de fornecê-lo.
O juiz, no entanto, entendeu que a conduta da operadora foi abusiva. Fundamentou sua decisão em três pontos principais:
- O direito fundamental à saúde está previsto na Constituição Federal.
- O rol da ANS é exemplificativo, ou seja, funciona como referência mínima de cobertura, mas não esgota todas as possibilidades de tratamento.
- A prescrição médica deve prevalecer sobre critérios meramente administrativos ou econômicos.
Com base nisso, foi concedida tutela de urgência, obrigando o plano de saúde a fornecer o medicamento prescrito imediatamente, sob pena de multa.
Esse caso exemplifica como a Justiça tem atuado para proteger consumidores diante de negativas consideradas abusivas.
O que diz a Lei dos Planos de Saúde
A Lei nº 9.656/1998, conhecida como Lei dos Planos de Saúde, regula a cobertura mínima obrigatória das operadoras. Embora preveja limitações, como a exigência de cumprimento de carências e a possibilidade de segmentação (ambulatorial, hospitalar etc.), não autoriza a negativa indiscriminada de tratamentos essenciais.
O artigo 12 estabelece as coberturas obrigatórias, e a própria legislação deve ser interpretada em consonância com o Código de Defesa do Consumidor (CDC), já que os contratos de plano de saúde são considerados relações de consumo.
Assim, mesmo que a lei não liste cada medicamento que deve ser fornecido, ela garante que o tratamento indicado por um médico habilitado não pode ser recusado de forma abusiva.
O rol da ANS: taxativo ou exemplificativo?
O rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS sempre foi tema de debates. Durante anos, os tribunais consideraram que esse rol tinha caráter exemplificativo, ou seja, funcionava apenas como referência mínima.
No entanto, em 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, em julgamento polêmico, que o rol seria taxativo, admitindo exceções em situações específicas (como inexistência de tratamento alternativo eficaz ou comprovação científica da eficácia do medicamento prescrito).
Essa decisão gerou insegurança, pois poderia restringir direitos dos pacientes. Pouco tempo depois, o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.454/2022, que restabeleceu o caráter exemplificativo do rol.
Ou seja, hoje, a regra é clara: o fato de um medicamento prescrito não constar na lista da ANS não impede sua cobertura, desde que haja prescrição médica fundamentada.
O impacto da Lei 14.454/2022
A edição da Lei 14.454/2022 foi um marco importante. Ela alterou a Lei dos Planos de Saúde para deixar expresso que o rol da ANS é apenas uma referência, e não uma lista fechada.
Na prática, isso significa que os planos de saúde não podem se recusar a fornecer medicamento prescrito apenas porque não estão no rol, devendo analisar cada caso concreto e considerar a prescrição do médico assistente.
Essa mudança trouxe maior segurança jurídica para pacientes e fortaleceu a tese de que o plano de saúde é obrigado a fornecer medicamento quando ele for essencial para a vida e saúde do beneficiário.
O direito do consumidor e o Código de Defesa do Consumidor (CDC)
Além da Constituição e da Lei dos Planos de Saúde, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) é peça-chave nessa discussão.
O CDC protege o paciente contra práticas abusivas, incluindo cláusulas contratuais que restrinjam direitos básicos. De acordo com o artigo 51, IV, são nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam obrigações abusivas ou que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada.
Nesse contexto, cláusulas contratuais que excluem medicamento prescrito indispensável ao tratamento podem ser consideradas nulas.
A importância da prescrição médica
Um dos pilares das decisões judiciais sobre fornecimento de medicamentos é a prescrição médica.
Somente o médico que acompanha o paciente tem condições de avaliar a necessidade de determinado fármaco. O plano de saúde, ao negar o fornecimento com base em critérios administrativos, invade a esfera técnica da medicina, o que configura prática abusiva.
Por isso, os tribunais reiteram que a indicação médica deve prevalecer, salvo quando houver comprovação de erro grave ou fraude — hipóteses raras.
Danos morais pela negativa de fornecimento
Além da obrigação de fornecer o medicamento prescrito, os planos de saúde podem ser condenados ao pagamento de danos morais quando a negativa causa sofrimento, angústia ou agrava o estado de saúde do paciente.
A jurisprudência entende que a recusa injustificada de cobertura representa uma ofensa à dignidade do consumidor. Em muitos casos, os valores indenizatórios variam entre R$ 5 mil e R$ 20 mil, dependendo da gravidade do dano.
Precedentes do STJ e tribunais estaduais
O STJ já consolidou diversos entendimentos sobre o tema, como:
- A recusa indevida de cobertura enseja reparação por dano moral.
- O rol da ANS é exemplificativo, após a edição da Lei 14.454/2022.
- A prescrição médica deve prevalecer sobre normas administrativas do plano.
Nos tribunais estaduais, é comum encontrar decisões determinando que o plano de saúde é obrigado a fornecer medicamento prescrito, mesmo de uso domiciliar ou não registrado na ANS, desde que haja comprovação de eficácia científica e prescrição médica.
Como agir diante da negativa do plano
Caso o plano de saúde negue a cobertura de medicamento prescrito, o paciente pode:
- Solicitar a negativa por escrito, com justificativa formal.
- Registrar reclamação na ANS.
- Buscar apoio de órgãos de defesa do consumidor, como o Procon.
- Em casos urgentes, ingressar com ação judicial para obter liminar que obrigue o fornecimento imediato do medicamento prescrito.
Esses passos são importantes para resguardar direitos e garantir que a saúde do paciente não seja comprometida por questões burocráticas.
Conclusão
A discussão sobre se o plano de saúde é obrigado a fornecer medicamento prescrito vai muito além da interpretação literal das normas. Trata-se de um tema que envolve o direito fundamental à saúde, a proteção do consumidor e a dignidade da pessoa humana.
A jurisprudência brasileira, reforçada pela Lei 14.454/2022, tem garantido que os pacientes recebam o medicamento prescrito necessário, mesmo fora do rol da ANS. A mensagem é clara: a vida e a saúde não podem ser limitadas por cláusulas contratuais abusivas.
Para pacientes e médicos, essa é uma vitória importante. Para as operadoras, um alerta de que a gestão financeira não pode se sobrepor ao direito à vida.