Em teoria, a coparticipação deveria representar uma forma de compartilhar custos: o consumidor paga uma parte reduzida do serviço utilizado, enquanto o plano cobre o restante. O problema surge quando essa cobrança se afasta dos limites legais e começa a pesar no bolso de forma indevida — algo que, infelizmente, tem ocorrido com frequência, o que torna a coparticipação abusiva.
Em outubro de 2023, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reforçou dois entendimentos essenciais sobre a legalidade da coparticipação, oferecendo maior clareza e proteção a quem depende do plano de saúde. Com a reafirmação de dispositivos já previstos na Resolução Normativa 465/2022 da ANS, muitos consumidores passaram a ter respaldo ainda mais sólido para questionar cobranças exageradas.
Este artigo aprofunda o tema de forma acessível, detalhando:
- o que é coparticipação;
- como funcionam os limites da RN 465/2022;
- como o STJ consolidou entendimentos fundamentais;
- quando a cobrança se torna irregular;
- como o consumidor pode agir diante de abusos (sem consulta jurídica individualizada).
1. O que é coparticipação e por que ela existe?
A coparticipação é um modelo de cobrança adotado por muitos planos de saúde como forma de tornar as mensalidades mais acessíveis. Em vez de pagar um valor fixo alto, o consumidor paga uma mensalidade menor e, ao utilizar determinados serviços, arca com um percentual do valor.
A lógica é simples: quem usa mais, paga mais; quem usa pouco, paga menos.
Mas essa simplicidade esconde um universo de regras específicas.
A coparticipação abusiva ocorre quando o valor cobrado ultrapassa limites legais, éticos ou contratuais. Em muitos casos, os beneficiários não têm clareza sobre o cálculo, não recebem demonstrativo detalhado e acabam pagando valores acima do permitido — sem sequer perceber que existe irregularidade.
Essa opacidade no sistema é um dos maiores problemas relatados pelos consumidores.
2. A RN 465/2022 e o que ela estabelece sobre limites de cobrança
Em 2022, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) atualizou o regramento da saúde suplementar por meio da Resolução Normativa nº 465, que trouxe novas diretrizes para a coparticipação e franquias.
Dentre essas diretrizes, destaca-se o artigo 19, inciso II, alínea b, que impõe duas limitações importantes:
(1) A coparticipação não pode superar 50% do valor contratado entre o plano e o prestador.
Isso significa que, mesmo que o prestador cobre um valor de referência alto, o consumidor só pode ser responsabilizado por até a metade do que foi acordado entre a operadora e o serviço de saúde.
Exemplo:
Se o plano negociou que uma consulta custa R$ 100, a coparticipação máxima é R$ 50 — nunca mais que isso.
(2) A soma da coparticipação no mês não pode ultrapassar o valor da mensalidade paga pelo beneficiário.
Essa regra evita que a coparticipação “exploda” em meses com maior necessidade de cuidados, impedindo que o consumidor tenha uma surpresa financeira inesperada.
Exemplo:
Se a mensalidade é R$ 500, o total de coparticipações somadas no mês não pode ultrapassar R$ 500.
Esses dois pilares servem como inibidores de coparticipação abusiva, pois impedem que o plano transfira ao consumidor um custo desproporcional.
3. A consolidação do STJ em outubro de 2023
Mesmo com regras claras na RN 465/2022, muitos beneficiários continuaram enfrentando cobranças ilegais de coparticipação abusiva. Parte das operadoras interpretava a norma de maneira flexível demais — o que levou inúmeros casos ao Judiciário.
Em outubro de 2023, o STJ, através do REsp 2.0010108/MT, pacificou dois pontos:
a) Nenhum plano pode cobrar mais de 50% do valor negociado com o prestador.
Essa reafirmação elimina brechas interpretativas utilizadas para justificar cobranças superiores.
b) A coparticipação mensal nunca pode ultrapassar o valor da mensalidade.
O tribunal reforçou que essa regra é objetiva e não admite flexibilização.
Esses entendimentos oferecem maior segurança jurídica, especialmente para consumidores que desconheciam seus direitos.
4. Por que tantos consumidores pagam valores além do permitido?
Existem três causas principais para a coparticipação abusiva:
1. Falta de transparência
Muitos contratos não apresentam claramente os valores negociados entre o plano e o prestador. Assim, o consumidor não tem parâmetros para saber se ultrapassou 50%, o que deixa a coparticipação abusiva.
2. Boletos confusos e falta de detalhamento
Diversos beneficiários só recebem uma cobrança total, sem discriminação por procedimento — tornando impossível verificar irregularidades.
3. Uso intensivo não previsto
Em períodos de maior necessidade (tratamentos contínuos, crises de saúde, exames sequenciais), as cobranças se acumulam rapidamente — superando o limite mensal sem o consumidor perceber.
5. Como identificar se você está diante de uma coparticipação abusiva
Existem sinais claros que podem indicar ilegalidade:
Sinal 1: A coparticipação do serviço ultrapassa 50%
Essa é a situação mais comum. Sem saber o valor negociado, muitos pagam valores acima do permitido o que deixa a coparticipação abusiva.
Sinal 2: A soma das coparticipações do mês ultrapassou sua mensalidade
A RN 465/2022 é clara: isso não pode acontecer.
Sinal 3: O plano não fornece demonstrativos
A falta de detalhamento é um indicativo de possível irregularidade.
Sinal 4: A cobrança cresce de forma repentina
Exames seriados, consultas frequentes e procedimentos de rotina nunca deveriam gerar valores desproporcionais.
Identificar esses sinais é o primeiro passo para evitar a continuidade de cobranças indevidas.
6. O que fazer diante da coparticipação abusiva (sem consulta individualizada)
Há caminhos possíveis, de forma geral, para lidar com a situação:
1. Solicite demonstrativo detalhado ao plano
A operadora tem obrigação de fornecer informações claras e acessíveis.
2. Compare os valores cobrados com as regras legais
- 50% do valor negociado
- limite mensal igual ao valor da mensalidade
3. Registre reclamação na ANS
Quando há descumprimento de normativas, a agência pode intervir para coibir a coparticipação abusiva.
4. Em casos persistentes, é possível questionar judicialmente
Quando existe indício de cobrança acima do limite, a via judicial pode permitir a recuperação de valores pagos a mais — sempre mediante análise jurídica adequada do caso concreto.
Não se trata de promessa de resultado, mas de um caminho previsto pela legislação.
7. Por que a coparticipação abusiva afeta a saúde emocional e financeira do consumidor
A saúde não é apenas física: envolve estabilidade emocional, segurança e previsibilidade.
Quando uma pessoa não sabe quanto pagará no próximo boleto, vive em constante estado de alerta.
Esse desgaste se manifesta em:
- ansiedade financeira;
- medo de buscar atendimento por receio de custos;
- adiamento de consultas importantes;
- interrupção de tratamentos;
- sensação de vulnerabilidade diante da operadora.
A legislação existe justamente para reduzir esses impactos, garantindo que a coparticipação, quando aplicada, seja justa, transparente e proporcional.
8. O papel transformador da informação
Muitos consumidores só descobrem que sofreram coparticipação abusiva depois de anos, ao revisar extratos antigos ou ao conversar com outro beneficiário mais informado.
A informação é a chave para impedir que essa realidade se repita.
Quando o consumidor entende:
- seus limites de cobrança,
- os dispositivos legais aplicáveis,
- a lógica da coparticipação,
- os sinais de abuso,
ele deixa de caminhar no escuro e passa a reconhecer seus direitos com clareza.
