Imagine estar sob internação, fragilizado, dependendo de medicamentos, exames e cuidados médicos contínuos — e, no meio desse cenário, receber a notícia de que o seu plano de saúde foi cancelado por atraso no pagamento. Para muitas famílias brasileiras, essa situação não é hipotética. Ela acontece. E quando acontece, gera medo, insegurança e desespero.
O que muita gente não sabe é que a legislação brasileira protege o paciente internado, mesmo que exista inadimplência. O cancelamento do plano de saúde durante a internação é, em regra, ilegal. Ainda assim, operadoras insistem nessa prática, apostando no desconhecimento do consumidor e na vulnerabilidade do momento.
Neste artigo, você vai entender por que o plano de saúde não pode cancelar o contrato durante a internação, quais são os fundamentos legais dessa proteção, o que o plano pode — e não pode — fazer em caso de atraso, e como o paciente pode se proteger de abusos.
A vulnerabilidade do paciente internado
A internação hospitalar coloca qualquer pessoa em uma situação extrema de fragilidade. Não se trata apenas de um procedimento médico: envolve dor, medo, dependência de terceiros e, muitas vezes, risco à própria vida.
É exatamente por isso que o ordenamento jurídico brasileiro reconhece que a saúde deve prevalecer sobre questões meramente financeiras. Durante a internação, o paciente não tem condições reais de negociar, trocar de plano ou buscar alternativas. Interromper o tratamento nesse momento pode gerar consequências graves, irreversíveis e, em alguns casos, fatais.
A lógica é simples: a cobrança não pode se sobrepor à saúde.
O que diz a Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/98)
A principal norma que regula os planos de saúde no Brasil é a Lei nº 9.656/1998, conhecida como Lei dos Planos de Saúde. Essa legislação estabelece direitos e deveres tanto das operadoras quanto dos beneficiários.
Embora a lei permita a rescisão do contrato por inadimplência em determinadas condições, ela impõe limites claros a esse direito. Um desses limites diz respeito exatamente à situação de internação hospitalar.
A interpretação consolidada é a seguinte:
👉 Mesmo inadimplente, o plano de saúde não pode cancelar o contrato durante a internação do paciente.
Esse entendimento decorre da leitura sistemática da lei, aliada aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do direito fundamental à saúde.
O papel do Judiciário na proteção do paciente
Ao longo dos anos, o Poder Judiciário tem sido chamado a se manifestar sobre casos em que planos de saúde tentaram cancelar contratos em momentos críticos. E a resposta tem sido reiterada: o cancelamento durante a internação é abusivo.
Tribunais estaduais e superiores vêm reafirmando que a operadora pode, sim, cobrar os valores em atraso, mas não pode interromper o tratamento nem cancelar o contrato enquanto o paciente estiver internado.
Esse entendimento está alinhado com o Código de Defesa do Consumidor, que proíbe práticas abusivas e impõe o dever de boa-fé nas relações contratuais. O consumidor de plano de saúde é reconhecido como parte vulnerável, especialmente em situações de emergência médica.
O Código de Defesa do Consumidor e a boa-fé
Os contratos de plano de saúde são, inequivocamente, relações de consumo. Isso significa que se aplicam as normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Entre os princípios mais relevantes está o da boa-fé objetiva, que exige comportamento leal, transparente e cooperativo entre as partes. Cancelar um plano de saúde no meio de uma internação, ainda que exista atraso no pagamento, viola frontalmente esse princípio.
Além disso, o CDC veda cláusulas que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada ou que contrariem a função social do contrato. A função de um plano de saúde é garantir acesso à assistência médica — especialmente nos momentos mais críticos.
Inadimplência não é carta branca para abusos
É importante deixar claro: a inadimplência não é ignorada pela lei. O plano de saúde pode adotar medidas para cobrar os valores em atraso. O que ele não pode fazer é usar a cobrança como instrumento de coerção que coloque a vida do paciente em risco.
Em termos práticos, o plano:
✔️ Pode cobrar as mensalidades atrasadas
✔️ Pode negociar parcelamentos ou acordos
✔️ Pode rescindir o contrato após a alta, respeitados os requisitos legais
❌ Não pode cancelar o contrato durante a internação
❌ Não pode interromper o tratamento
❌ Não pode negar cobertura de procedimentos já em curso
❌ Não pode expor o paciente a risco
Essa distinção é fundamental para compreender os limites da atuação das operadoras.
Por que alguns planos insistem em cancelar?
Se a lei é clara e o Judiciário reafirma esse entendimento, por que ainda vemos casos de cancelamento durante a internação?
A resposta é dura, mas realista: muitos planos apostam no desconhecimento do consumidor. Em um momento de fragilidade emocional, o paciente ou a família tende a aceitar a informação sem questionar, acreditando que “não há o que fazer”.
Além disso, o medo de retaliação, a urgência do tratamento e a falta de orientação jurídica imediata criam um ambiente propício para abusos. Por isso, informação é proteção.
A importância da informação antes da crise
Grande parte dos conflitos com planos de saúde só chega ao conhecimento do consumidor quando o problema já está instalado. Mas conhecer os direitos antes da crise faz toda a diferença.
Saber que o plano de saúde não pode cancelar o contrato durante a internação permite uma postura mais segura, reduz o pânico e facilita a busca por soluções adequadas. Informação não elimina o problema, mas reduz drasticamente o impacto emocional e prático da situação.
O direito à continuidade do tratamento
Um dos pilares dessa proteção legal é o direito à continuidade do tratamento. A medicina moderna reconhece que a interrupção abrupta de cuidados pode agravar quadros clínicos, gerar sequelas e até levar à morte.
Por isso, a continuidade do tratamento é vista como extensão do próprio direito à vida. Nenhuma cláusula contratual pode se sobrepor a esse princípio quando está em jogo a integridade do paciente.
Casos comuns na prática
Na prática jurídica, é comum encontrar situações como:
- Paciente internado em UTI com plano cancelado por atraso recente
- Cirurgia em andamento interrompida por comunicação de rescisão
- Alta hospitalar condicionada ao pagamento imediato de mensalidades
- Famílias pressionadas a assinar documentos em momentos críticos
Essas práticas são amplamente questionáveis e, muitas vezes, ilegais.
O papel da ANS
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) regula o setor e estabelece normas que reforçam a proteção do consumidor. Embora nem todas as regras estejam expressas de forma literal sobre a internação, a atuação da ANS caminha no mesmo sentido do Judiciário: priorizar a assistência e a segurança do paciente.
A regulação do setor busca equilibrar a relação entre operadoras e beneficiários, evitando que o poder econômico se sobreponha ao direito fundamental à saúde.
Quando buscar orientação jurídica
Sempre que houver ameaça de cancelamento durante a internação, negativa de cobertura ou interrupção de tratamento, é recomendável buscar orientação jurídica especializada. Cada caso possui particularidades que precisam ser analisadas com cuidado.
A atuação jurídica, nesses casos, tem caráter informativo e protetivo, voltado à preservação de direitos e à correção de práticas abusivas, sem promessas ou garantias de resultado.
Saúde não é mercadoria comum
Embora os planos de saúde sejam contratos privados, eles lidam com um bem jurídico extremamente sensível: a saúde humana. Por isso, não podem ser tratados como contratos comuns de prestação de serviços.
A jurisprudência brasileira reconhece essa especificidade e impõe limites à atuação das operadoras. O cancelamento do plano de saúde durante a internação é um exemplo claro de prática que ultrapassa esses limites.
Conclusão: dignidade acima da cobrança
Em resumo, mesmo inadimplente, o plano de saúde não pode cancelar o contrato durante a internação do paciente. Essa proteção existe para preservar a vida, a dignidade e a continuidade do tratamento.
A cobrança pode e deve ocorrer, mas fora do contexto de risco imediato à saúde. Quando a operadora ignora esse limite, comete abuso.
Conhecer esse direito é fundamental para que pacientes e famílias não sejam surpreendidos em um dos momentos mais delicados da vida. Informação não é apenas conhecimento — é uma forma de proteção.
