A recusa terapêutica deixou de ser um tema abstrato discutido em salas de aula — hoje é motivo real de sindicâncias, ética e litígio. A dúvida que fica pairando no plantão, com o paciente afirmando “não quero transfusão” ou “não aceito esta cirurgia”, pode se transformar, meses depois, em investigação no conselho profissional ou processo judicial. Ainda mais complicado: em qualquer dessas situações, cada palavra dita — ou omitida — pode ser minuciosamente dissecada.
Não é exagero. A verdade é dura para quem não se prepara. Por outro lado, para quem se antecipa e organiza o processo, existe um caminho seguro: transformar a recusa em decisão documentada, fundamentada e juridicamente defensável.
1. O arcabouço normativo e o dilema real
O direito do paciente de recusar tratamento está amparado no ordenamento jurídico brasileiro desde o artigo 15 do Código Civil — ninguém pode ser forçado a submeter-se a tratamento médico com risco de vida.
Essa prerrogativa converge com os princípios do Código de Ética Médica (CEM), que exige informação clara, preservação da autonomia e consentimento livre e esclarecido.
Para orientar essa relação, a Resolução CFM 2.232/2019 regulamenta a recusa terapêutica: desde que o paciente seja maior, lúcido e capaz de entender — e que a recusa seja feita de forma consciente, após informação adequada —, o médico deve respeitar a decisão.
Mas também existe limite: a recusa não pode pôr em risco a vida ou saúde de terceiros, nem surgir de coação ou manipulação. Nesses casos, o profissional pode recusar-se a acatá-la e, em contexto de urgência, deve adotar o tratamento para preservar a vida.
Ou seja: recusa terapêutica não é rótulo genérico — é ato jurídico que exige requisitos rigorosos.
2. Recusa terapêutica: o que realmente significa?
Para que a recusa seja válida — e útil para fins de defesa —, ela deve reunir os seguintes elementos:
- Paciente maior de idade, lúcido e com capacidade de decisão.
- Explicação clara sobre diagnóstico, prognóstico, riscos, benefícios e alternativas.
- Informação sobre consequências da recusa.
- Liberdade de escolha — sem coação, ameaça ou indução.
- Manifestação firme e reiterada da vontade.
Sem essas condições, o que existe pode não ser uma recusa legítima, mas uma falha no processo informativo — o que expõe o médico a risco ético.
3. Documentação: a pedra angular da defesa médico-legal
Em qualquer sindicância ou ação judicial, um prontuário bem feito é a melhor proteção do profissional. O que não estiver registrado vale como se não existisse.
Um prontuário defensivo deve incluir:
- Data, hora e local da conversa sobre recusa.
- Quem participou (paciente, familiares, outros profissionais).
- Conteúdo da explicação: diagnóstico, riscos, alternativas, consequências.
- Confirmação de que o paciente compreendeu — inclusive pedindo para ele explicar com suas próprias palavras.
- Manifestação expressa da recusa, preferencialmente por escrito, com testemunhas se a recusa implicar risco grave.
- Registro de que o paciente estava lúcido e consciente no momento da decisão.
Se faltar algo disso, a defesa enfraquece — mesmo com a recusa formal registrada.
4. Situações de risco: quando a recusa terapêutica não é suficiente
Existem cenários em que a recusa não basta para justificar a omissão do tratamento, em especial:
- Situações de emergência ou risco iminente de morte: o médico deve agir, mesmo sem consentimento formal.
- Pacientes incapazes de expressar vontade — com comprometimento cognitivo, sedação ou menor de idade: nesses casos, a decisão deve respeitar o melhor interesse do paciente, com participação familiar ou judicial.
Nesses casos, a recusa perde a força jurídica. O profissional deve priorizar a vida, resguardar a dignidade e, se possível, buscar alternativas éticas (como diretrizes antecipadas de vontade).
5. Plano de saúde, hospital ou recusa terapêutica: quem responde por quê?
Nem sempre a recusa terapêutica é decidida pelo paciente: muitas vezes, vem de uma recusa da operadora, de limitação técnica ou de falta de estrutura. Nessas hipóteses:
- O médico e a instituição devem registrar que indicaram o tratamento ideal.
- Registrar se o plano negou cobertura ou se faltaram recursos.
- Caso o paciente e a instituição concordem em outro caminho, isso deve ficar claro no prontuário.
Dessa forma, quando surgir questionamento, não se confundem condutas médicas com falhas administrativas.
6. Diretivas Antecipadas de Vontade: proteção extra para decisões futuras
Outra ferramenta importante são as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV), regulamentadas pela Resolução CFM 1.995/2012. São declarações prévias onde o paciente informa, em cenário de saúde futuro, quais tratamentos aceita ou rejeita.
As DAV são essenciais para:
- orientar condutas em casos de incapacidade;
- reduzir incertezas;
- servir como prova documental da vontade do paciente;
- evitar impasses éticos e judiciais.
Adotar o uso de DAV é cuidado humanizado — e também ato de prevenção jurídica.
7. Como transformar um dilema em defesa estruturada
Quando uma recusa terapêutica se transforma em disputa ou processo, o que realmente conta não é o argumento mais dramático. É a organização documental e ética:
- prontuário completo;
- termos de consentimento ou recusa bem redigidos;
- registro da explicação, da manifestação de vontade e da compreensão pelo paciente;
- distinção clara entre recusa individual, limitação institucional ou negativa de plano;
- adoção de DAV, quando possível;
- atuação institucional: comitê de ética, jurídico, registro formal da recusa;
- escolha de instituições com protocolos claros, treinamento de equipe e cultura de documentação.
Quando o atendimento segue esse caminho, mesmo os casos mais sensíveis ganham contornos de defesa — não de drama.
✅ Conclusão: Recusa terapêutica bem documentada é segurança para o médico
A recusa terapêutica não vai sumir com o tempo. Ao contrário: em um contexto de valorização da autonomia, da liberdade religiosa e do protagonismo do paciente, ela será cada vez mais frequente.
Mas isso não precisa ser um problema.
Para o médico preocupado com sua reputação, a recusa terapêutica deve representar:
- um dever de informação,
- uma oportunidade de registrar ética e técnica,
- uma chance de proteger-se juridicamente.
Quem transforma dilema em processo documentado, com ética e clareza, ganha muito mais que tranquilidade — ganha segurança, respeito e credibilidade.
